REFLEXÕES SOBRE OS EFEITOS DO CORONA VÍRUS NOS CONTRATOS
- Dra. Joyce Carvalho
- 21 de abr. de 2020
- 6 min de leitura
Inicialmente, importante destacar que há diferença de efeitos dependendo do tipo de contrato, se é um contrato de consumo ou um contrato civil com paridade entre as partes.
No caso de contratos de consumo o arcabouço legal será, primeiramente, o Código de Defesa do Consumidor que confere maior proteção ao consumidor, considerando o desequilíbrio contratual geralmente presente em tais relações. Por sua vez, os demais contratos civis devem observar as normas previstas no Código Civil.
Entretanto, independente da natureza do contrato, certo é que a Constituição Federal deverá ser aplicada a todos os contratos, eis que se trata da norma de hierarquia superior em nosso ordenamento jurídico.
Em razão da pandemia foi desencadeada uma crise mundial, sendo inúmeras relações contratuais afetadas sobremaneira. Fato é que se trata de um episódio de FORÇA MAIOR (force majeure), ou seja, um fato inevitável, um fortuito externo, independente da vontade humana (vis major est cui humana infirmitas resistire non potest).
Os gravíssimos impactos sociais provocados por essa crise mundial tem levado muitas pessoas a compararem o cenário atual a um cenário de guerra, justificando a adoção de medidas legislativas e governamentais urgentes de amparo ao cidadão.
Assim, sem sombras de dúvidas, o primeiro dispositivo que deverá ser observado neste momento, em qualquer relação contratual, é o artigo 1º, III, da Constituição Federal que reconhece a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA como fundamento da República Federativa do Brasil. Vejamos:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
(...) III - a dignidade da pessoa humana;
Tal dispositivo deve ser observado cumulativamente com o Preâmbulo da Constituição Federal que estabelece o PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE.
Assim, os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Fraternidade serão os guias para enfrentamento dos inúmeros casos que irão assolar o judiciário.
Certo é que vivemos em uma sociedade que preza pela liberdade econômica, contudo o capitalismo não pode ser selvagem, mormente em uma momento como este.
Neste passo, o atual cenário permite a adoção de medidas mais intervencionistas por parte do Estado , a fim de resguardar os direitos básicos da população, o mínimo existencial.
Seguindo tal embasamento algumas medidas já foram adotadas, tais como: quarentena, determinação de fechamento do comércio e de serviços não essenciais, suspensão do corte de serviços essenciais mesmo em caso de inadimplência durante o período da pandemia, dentre outras inúmeras medidas que afetam diretamente o direito privado.
Tramitam, ainda, inúmeros projetos de lei que preveem a suspensão de aluguel, a redução de mensalidades de estabelecimentos de ensino, até mesmo moratória para alguns contratos.
Historicamente, cabe ressaltar o período pós Primeira Guerra Mundial no qual foram editadas leis específicas para aquele momento, a fim de estabelecer um regime de transição, até que a sociedade conseguisse se equilibrar minimamente. Surgiu, assim, a ideia da justiça pós-conflito que foi sendo aperfeiçoada com o passar do tempo.
Assim, considerando a inegável crise decorrente da pandemia, fica evidente a necessidade de um regime de transição, para guiar os cidadãos, restabelecer o equilíbrio das relações contratuais e impedir uma busca desenfreada pelo judiciário, evitando decisões conflitantes em situações idênticas.
Portanto, em que pese a existência de leis que amparem a revisão contratual, o mais adequado, a meu ver, seria a expressa regulamentação de determinados assuntos (uma legislação de transição), a fim de conferir maior segurança jurídica para a população e reduzir o número de lides que se arrastarão por anos no judiciário.
Atualmente, já é possível verificar casos idênticos com decisões conflitantes no judiciário. Um exemplo disto são as ação ajuizadas por locatários de lojas comerciais visando a suspensão do aluguel durante o período de fechamento compulsório, alguns juízes determinaram a redução do aluguel, alguns suspenderam por completo e outros mantiveram integralmente a prestação. Confira:
TJSP, Processo n. 1027402-35.2020.8.26.0100, 28ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 30.3.2020
TJSP, Processo n. 1028137-68.2020.8.26.0100, 15ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 2.4.2020
TJSP, Processo n. 1027457-83.2020.8.26.0100, 32ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 01.04.2020
TJSP, Processo n. 1027403-20.2020.8.26.0100, 4ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 31.3.2020
TJSP, Processo n. 1027443-02.2020.8.26.0100, 8ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 31.3.2020
TJSP, Processo n. 1026080-77.2020.8.26.0100, 21ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, 25.3.2020
A maioria das ações estão sendo ajuizadas com amparo nos artigos 317 e 478 do Código Civil. O primeiro prevê as hipóteses de caso fortuito e força maior, e o segundo a teoria da imprevisão e onerosidade excessiva. Vejamos:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Pois bem. Conforme define o parágrafo único do Art. 393 do Código Civil, "o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". Assim, considerando que a pandemia apesar de ser algo previsível não teria como ser impedida, se enquadra na hipótese de fato de força maior.
O dispositivo 478 do Código Civil, por sua vez, estabelece três requisitos, quais sejam: excessiva onerosidade; evento extraordinário e imprevisível; e extrema vantagem para a outra parte. A dificuldade de aplicação do referido artigo está justamente na demonstração do terceiro requisito, ao passo que na maioria dos contratos ambas as partes foram afetadas pela crise, sendo dificultosa ou, até mesmo inexistente, a extrema vantagem para a outra parte.
Importante observar, ainda, que Superior Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido de só se aplicar a teoria da imprevisão nos casos nos quais houve inaceitável alteração da comutatividade, dando primazia ao Pacta Sunt Servanda (vide RESP 1.581.075-PA, RESP 977.077-GO e RESP 945.166-GO).
Assim, diante da dificuldade de demonstração do terceiro requisito do artigo 478 do Código Civil, provavelmente, orientarão as decisões judiciais os princípios da Boa fé, da Probidade e da Vedação à Onerosidade Excessiva, previstos nos artigos 113, 187, 317, 422 e 480, in verbis:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Contudo, conforme abordado anteriormente, nos conflitos levados ao judiciário a interpretação do dispositivo e os critérios de restabelecimento da comutatividade ficará a cargo do juiz competente, o que pode levar a decisões conflitante para casos idênticos, levando anos até se chegar a uma decisão definitiva em última instância no processo.
Cumpre ressalvar, uma vez mais, que os contratos de consumo possuem tratamento diferenciado e o artigo 6º, v, do Código de Defesa do Consumidor é mais radical quanto a Teoria da Imprevisão. Vejamos:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
(...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
Nota-se que não há o terceiro requisito previsto no artigo 478 do Código Civil, ou seja, para a revisão dos contratos de consumo não é necessária a demonstração de extrema vantagem para a outra parte. Basta, portanto, o consumidor demonstrar a existência de fato superveniente e a onerosidade excessiva. O primeiro requisito é fato público e notório, sendo de fácil demonstração em juízo. O segundo requisito, por outro lado, dependerá das peculiaridades de cada caso.
Conclusão
Fato é que o mundo está vivendo um momento sem precedentes, gerando tamanha insegurança jurídica e a necessidade de intensificar as reflexões, para que seja possível se chegar às soluções mais razoáveis e proporcionais possíveis, nas três esferas de poderes.
A meu ver, é primordial neste momento que acabe esta "briga de egos" dos três poderes, pois a sociedade necessita de uma atuação conjunta destes para que se chegue o mais rápido possível a soluções equilibradas, para restabelecer a segurança jurídica dos contratos.
Independente de qual lado do poder saia vencedor nesta "competição de egos", teremos um único perdedor em qualquer hipótese, a sociedade. Portanto, mais do que nunca, o Princípio da Fraternidade é de extrema importância, devendo servir como guia para os três poderes na hora de tomarem suas decisões.
Precisamos de menos críticas e mais ações de TODOS!
Me conta: quais medidas você entende serem mais razoáveis para serem adotadas neste momento ???
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